quarta-feira, novembro 23, 2005

O sacrifício de Sitá

As epopeias da India são uma coisa "fabulosa" (mesmo de fábula). O Ramayena que foi escrito no período clássico do sânscrito é geralmente atribuído a Valmiki, um sábio que vivia na floresta.


Os heróis desta epopeia são diferentes dos da época lendária. Isso pode ver-se no carácter do herói Rama, já profundamente indiano, guerreiro por nascimento e educação (casta dos Ksatryas), mas mais humano que Indra e Varuna, divindades védicas (de onde datam os Vedas, as escrituras sagradas - Veda vem da raiz sânscrita Vid =ver)


Se bem que é um herói deificado, como homem, é um filho obediente, um irmão leal, esposo amantissimo, rei benévolo, cavaleiro fidalgo, amigo sincero e inimigo generoso, qualidades que lhe deram encarnação divina mas como simples mortal, tem as mesmas paixões e sentimentos de todos os mortais.

Rama, um de quatro filhos do rei Dasarata, foi o único capaz de vergar o arco do deus Rudra e por isso ganhou a mão de Sitá, filha de Janaka de Videha, moderno Tirhut.


Tremendamente apaixonados, este jovem casal não deixou de passar por várias provações, entre as quais o rapto de Sitá por Ravana e a sua clausura em Lanká.

Rama conseguiu resgatar Sitá das garras de Ravana e fugir da ilha de Lanká (actual Sri Lanka) num carro alado. Mas isto era apenas o inicio de uma mais longa separação.

Circulavam no palácio rumores de que Sitá não teria sido fiel a Rama enquanto esteve prisioneira. Sitá nem por sombras quis crer que Rama acreditava em tais boatos. Ela jamais teria perdido a sua pureza para outro homem.


Resolveu então sacrificar-se ao fogo, lançando-se nas chamas flamejantes de uma pira. Mas Agni, o Deus do Fogo (atente-se na semelhança com o latim ignis), poupa-a e nem sequer ao de leve o seu vestuário e os seus cabelos foram tocados pelas chamas, que se afastam e criam à sua volta um circulo e sobre a sua cabeça uma aurea de fogo. Rama, ao assistir a este episódio, entoa-lhe cânticos de louvor, afirmando jamais ter desconfiado da sua pureza.

No entanto, tempos volvidos, os rumores tomaram dimensões inesperadas. Rama, convencido que a sua esposa, de natureza dupla, divina e humana, o teria realmente traído, mandou um homem da sua confiança acompanhar Sitá à floresta e matá-la aí, trazendo como prova um pedaço das suas vestes manchadas de sangue.

Na floresta, o aio de Rama não teve coragem de sacrificar Sitá. Poupou-lhe a vida, dizendo-lhe para fugir e não mais aparecer na corte. Sitá assim fez, coberta de lágrimas. O aio feriu um animal no caminho e levou como prova a Rama.

Quem recolheu Sitá foi o sábio Valmiki, o autor do Ramayena. Sitá estava grávida e dessa gravidez resultaram dois belos rapazes: Kusha e Lava. Valmiki ensinou desde cedo os jovens a cantar os feitos de seu pai e enviou-os um dia à corte para cantarem e glorificarem o seu pai pessoalmente.


Rama ficou impressionado com a emoção dos jovens. Perguntou-lhe de onde vinham. Eles responderam que eram filhos de Sitá. Rama ficou radiante. Perguntou-lhes por Sitá. Valmiki disse que Sitá estava na floresta onde criara os seus filhos.

Rama quis ver imediatamente Sitá. Ao vê-la sentiu ainda a sua paixão e ofereceu-lhe o seu trono. Mas, Sitá, incorruptivel até ao último momento, proclama:
"Oh Terra, tu a quem devo a minha existência, justifica-me este dia em presença de todo o universo; e se é verdade que eu nunca deixei de ser uma mulher virtuosa, concede-me a prova irrefutável da minha castidade, abrindo debaixo dos meus pés e engolindo-me."


Mal pronunciou estas palavras, a terra, respondendo ao seu rogo, abriu-se e engoliu-a viva nas suas entranhas. Rama não sobreviveu muito tempo à sua esposa e dividindo o seu reino pelos seus dois filhos, retirou-se para as margens do Ganges, onde viveu os seus derradeiros dias em retiro espiritual e arrependimento, livertando-se assim da roda da vida.

Páginas que o tempo tece...

2 Opiniões

Anonymous Anónimo said...

é curioso observar o modo como as cosmogonias de países tão distantes se aliam no campo das temáticas... quem não consegue encontrar aqui as mesmas reminiscências dos irmãos rómulo e remo ou do regresso de ulisses a casa? nao sinto o fascinio pela Ìndia como tu, mas tenho de reconhecer que tem aspectos da sua cultura fascinantes!
Ana

quarta-feira, 23 novembro, 2005  
Blogger Siddhichandra said...

Ana

Curiosa também é a recorrência da imagem da morte na floresta e o disfarce de sangue com um animal que encontramos no conto da Branca de Neve.

A memória colectiva é uma coisa fantástica!!

Beijo

quarta-feira, 23 novembro, 2005  

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