quinta-feira, novembro 17, 2005

A Sagração da Primavera de Igor Stravinsky (1882-1971)

Escrevo hoje umas linhas sobre A Sagração da Primavera, a não perder no grande auditório do CCB, dia 18 e 19 de Novembro pelas 21hoo.
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O autor desta brilhante composição descreveu-a assim:
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“Na «Sagração da Primavera» quis expressar a elevação sublime da Natureza renovando‑se a si própria [...]. No Prelúdio, antes da cortina se erguer, confiei à minha orquestra a expressão do grande medo que pesa sobre qualquer alma sensível quando confrontada com potencialidades, com o “que é próprio de cada um” e que pode crescer e desenvolver‑se infinitamente. Um frágil som de flauta contém potencialidades, disseminando‑se por toda a orquestra. É a obscura e imensa sensação de que todas as coisas estão conscientes quando a Natureza renova as suas formas; é o vago e profundo mal‑estar da puberdade universal. Mesmo na orquestração e no desenvolvimento melódico procurei definir esse estado.

Todo o Prelúdio está baseado num contínuo «mezzo forte». A melodia desenvolve‑se numa linha horizontal que apenas o conjunto de instrumentos (o poder intenso e dinâmico da orquestra e não da linha melódica em si própria) pode fazer crescer ou diminuir. Como resultado, não atribuí esta melodia às cordas que são demasiado simbólicas e representativas da voz humana; com os «crescendos» e «diminuendos» apresentei, antes, os instrumentos de sopro que têm um som mais seco, que são mais precisos, menos apetrechados para a expressão fácil e, deste modo, mais adequados ao meu propósito.
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Numa palavra, procurei expressar neste Prelúdio o medo da natureza antes do surgimento da beleza, o terror sagrado perante o Sol do meio-dia, uma espécie de grito pagão. O próprio material musical cresce, dilata‑se, expande­‑se. Cada instrumento é como um botão que se desenvolve na casca de uma árvore envelhecida; torna‑se parte de um todo imponente. E toda a orquestra, toda esta aglomeração de instrumentos, deve ter a significação do Nascimento da Primavera.

Na primeira cena, alguns rapazes aparecem acompanhados de uma mulher muito velha, cuja idade e até o século é incerto, que conhece os segredos da Natureza e ensina aos seus filhos a Profecia. Ela corre, inclinada sobre a terra, meio‑mulher, meio‑animal. Os adolescentes, a seu lado, são os Áugures da Primavera que marcam com os seus passos o ritmo e o pulsar primaveril.

Durante este momento, as raparigas chegam do rio. Formam um círculo que se mistura com o círculo dos rapazes. Eles, no seu conjunto, ainda não são seres totalmente formados, o seu sexo é único e duplo como o de uma árvore. Os grupos misturam‑se mas, nos seus ritmos, adivinha‑se o seu próprio fim. Com efeito, eles dividem‑se para a direita e para a esquerda. É a realização da forma, a síntese dos ritmos e o que é gerado produz um novo ritmo.
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Os grupos separam‑se e competem entre si; mensageiros vão de um lado para o outro e iniciam‑se disputas. É a definição das forças através do esforço, o mesmo é dizer através dos jogos. Mas uma Procissão chega. É o Santo, o Sábio, o Pontífice, o mais velho do clã. Todos ficam aterrorizados. O Sábio bendiz a terra, estendendo-se sobre ela com os braços e as pernas esticados, tornando‑se um único com o solo. A sua bênção é um sinal para a irrupção do ritmo. Cada um, cobrindo a sua cabeça, corre em espiral, multiplicando‑se como as novas energias da Natureza. É a Dança da Terra.

A segunda cena começa com um jogo obscuro das raparigas. No começo, o quadro musical é baseado na canção que acompanha as suas danças. Elas marcam com o seu dançar o lugar em que a Eleita será confinada e do qual não se poderá mover. A Eleita é aquela que se consagrará à Primavera e que dará a esta a força que a juventude tirou.

As jovens dançam em volta da Eleita, numa espécie de glorificação. Então acontece a purificação do solo e a Evocação dos Anciãos. Os Anciãos reúnem‑se em volta da Eleita que começa a “Dança da Consagração”. Quando ela está quase a cair, exausta, os Anciãos, apercebendo‑se disso, lançam­‑se sobre ela como monstros de rapina de forma a que ela não possa tocar no solo, agarrando‑a e elevando‑a em direcção ao céu. O ciclo anual das forças que nasceram de novo e que cairão outra vez no seio da natureza é realizado nos seus ritmos essenciais.
Sinto‑me muito feliz por ter encontrado em Nijinsky o colaborador ideal e em Roerich, o criador da atmosfera plástica para esta obra de fé.”

In Igor Stravinsky, «Ce que j’ai voulu exprimer dans le Sacre du Printemps » Montjoie! I/8, 29 de Maio de 1913 (cit. in Peter Hill, Stravinsky. The Rite of Spring, Cambridge et al., Cambridge University Press, 2000, pp.93‑94).
Sobre a Shen Wei Dance Arts (Companhia que traz a peça ao CCB)

Sediada em Nova Iorque, a Shen Wei Dance Arts foi fundada em 2000 e dedica-se à criação de dança baseada na fusão de várias formas de arte: dança, teatro, ópera chinesa, pintura e escultura que resultam num hibridismo muito original da cultura oriental e ocidental.
"O processo criativo de Shen Wei parte da experimentação do movimento onde cada um dos seus trabalhos multifacetados exigem a invenção de um vocabulário físico inteiramente novo.

2 Opiniões

Blogger Siddhichandra said...

Olá Pólux

Já visitei o teu blogue mas ainda não li todo o conto. do que li gostei muito! Fico contente da forma como nasceu.

Obrigado pelo contributo. Desconhecia esta curiosidade. é de facto complicado agradar as pessoas quando elas vão pelo sentido estético apenas. Principalmente para génios como este, que centrou a sua preocupação num sentido tão subtil.

Um abraço

sábado, 19 novembro, 2005  
Blogger Rafiux said...

Gostei muito deste texto. Obrigada por compartilhá-lo.
Um abraço

quinta-feira, 21 fevereiro, 2008  

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